Não fiz mais do que me remexer na cama por mais de uma hora. Resolvi sair e andar um pouco. Estava mais frio do que na noite anterior, o acampamento estava vazio como de costume. Todos os outros jogadores estavam dormindo e eu era a única do lado de fora. Perto do portão estavam alguns guardas. Eu achei melhor não chegar perto, esperei Blast voltar escondida atrás de um arbusto. Passaram-se algumas horas, eu estava encolhida atrás de um arbusto quando Blast colocou a mão no meu ombro.
-Deus!
-Desculpa.
Ele sorriu, eu me levantei esfregando os braços congelados.
-E aí? Como foi?
-Eles aceitaram o plano. Vão acabar com isso tudo durante o desafio.
Eu o abracei.
-Vamos sair daqui finalmente!
Eu olhei seu rosto.
-O que é isso no seu queixo?
Ele deu um passo para trás.
-Não é nada.
-Deixe-me ver.
Eu me aproximei. O queixo dele estava com um ponto roxo, bem perto da boca. Eu passei os dedos por impulso, Blast virou a cabeça.
-Desculpa.
-Sua mão tá gelada.
-Eu estou inteira gelada.
Ele sorriu.
-Então vamos entrar. Eu acho que amanha vai chover, dia de desfio de resistência.
Andamos de volta até a minha barraca.
-É melhor ir contando os dias Ghost, daqui a pouco vamos sair daqui.
-Bia.
-O que disse?
-Meu nome é Bia.
Ele sorriu.
-Bem, então é melhor ir contando os dias Bia.
Ele virou as costas e começou a andar.
-Blast?
Ele se virou.
-Não vai me dizer seu nome?
Eu sorri, ele deu um passo na minha direção.
-Eu não pedi para você dizer o seu.
Ele riu e se virou.
-Blast...
-Diga.
-Pra onde você vai quando sairmos daqui?
Ele ficou em silêncio alguns segundos.
-Não sei. Ainda tenho algum tempo pra pensar nisso.
E saiu andando, entrei na barraca e me cobri com o que tinha ali. Não demorei muito pra adormecer. Pela primeira vez em muito tempo eu não tive um pesadelo, estava na praia das conchas, sentada na areia observando o mar.
-Vamos?
Bast estendeu a mão para mim e me ajudou a levantar.
-Tem certeza de que quer pular? É muito alto!
Ele riu.
-Deixa de ser boba criatura, nada de mal vai acontecer.
Escalamos as pedras no canto da praia para chegar ao penhasco. Era como eu chamava o lugar onde as pedras davam espaço para a imensidão azul. Era mesmo muito alto, todas as vezes que cheguei aqui, desisti na última hora.
-Eu não sei não...
Blast me segurou pelos ombros e me olhou bem nos olhos.
-Olha pra mim, nada de mal vai acontecer está bem? É só um pulo. Vamos lá.
Eu esperei alguns instantes. Cheguei na borda para olhar, não havia pedras lá em baixo, apenas o mar e as ondas.
-Então vamos no três...
Eu me virei mas não encontrei Blast. Não havia nada ali. Me desesperei e comecei a gritar seu nome, ninguém respondia. Não havia nada. Fiz o caminho de volta e escorreguei em uma das pedras, machuquei a perna. Alguém grita atrás de mim, volto para o penhasco a tempo de ver o Doutor Sociopata cortar o pescoço de Blast. Eu mordo o punho, mas ele escuta o grito abafado e se vira para mim, limpando a faca na blusa.
-Uma pena não é mesmo? Primeiro os seus amigos, depois este pequeno impostor aqui... Uma pena.
-O que ele fez pra você!
Eu estou gritando com ele, não posso suportar, todos aqueles perto de mim morrem. Todos morrem, mas Jason faz questão de que eu fique sozinha, seja sua jogadora. Ganhe o seu desafio.
-Ele ia tirar você daqui, assim como os seus amiguinhos. Não posso permitir tal coisa.
Ele passa os dedos pela minha bochecha, eu me afasto.
-Não seja tão dura consigo mesma, acontece que você fez um trato comigo. Eu deixaria seu amiguinho em paz e em troca você seria a minha jogadora.
-Mas você os matou.
-Isso foi antes de fazermos o trato.
-Não há trato algum!
Ele agarrou os meus cabelos e colocou a faca na minha garganta.
-Então há uma ameaça. Colabore ou terei que arranjar outra jogadora.
-Então comece a procurar.
Ele sorriu. Eu dei soquei seu rosto e me afastei. Ele se recuperou e vinha na minha direção, eu andava par trás com cuidado, estava perto da borda.
-Você é a minha jogadora Bia, não há como fugir.
Ele tentou puxar meu braço mas eu puxei de volta, caindo na imensidão azul.
Acordei num salto, meu coração estava tão acelerado que martelava em meus ouvidos. Saí da cabana, garoava em pouco e todos os outros jogadores estavam saindo do acampamento. Eu os segui, eles estavam indo para Arena.
-"BEM VINDOS APOSTADORES, HOJE TEREMOS UMA PEQUENA MUDANÇA DE PLANO. TODOS OS JOGADORES DEVEM SE APESENTAR PARA O DESAFIO DE RESISTÊNCIA".
A voz eletrônica começava mais um jogo. Encontrei Ky e Bloom no meio do caminho para a Arena.
-O que é esse desafio de resistência?
-É algo bem simples na verdade, você tem que dar conta de um zumbi, cada jogador recebe um.
-Só isso?
Bloom se vira para mim.
-Acontece que você não pode matá-lo. Apenas fugir e não deixar ele te morder, até que só reste você na Arena.
-Nossa.
-É muito disputado, alguns preferem mutilar o zumbi pra que ele fique mais lento e não consiga te perseguir, outros preferem se esconder. E há os burros que preferem deixar o zumbi cansado.
-Isso é loucura!
-Não se preocupe Ghost, capitães de equipe não fazem parte desse jogo.
-Então vocês estão salvos, ninguém me disse nada sobre ser capitã.
Eles olharam para mim.
-Você não viu o comunicado? Apareceu hoje de manhã.
-Não...
-Tiraram a Darkness Death do comando. Você é a nova co-capitã da equipe azul.
-Nossa.
-Parabéns!
Ky me abraçou e me guiou até uma área onde podíamos sentar e assistir. Não que eu tivesse escolha.
-Já vai começar, as PET's estão entregando as armas. Sabia que você é a única com uma espada? Eu tenho uma faça de caça.
Ky parecia ansioso.
-Bem, na minha estreia era a única opção plausível.
-Plausível?
Eu ri.
-Sim, plausível. A única coisa que seria sensato escolher.
Ele ficou quieto por alguns instantes e resmungou.
-Tenho cara de dicionário?
Eu ri de novo, Bloom me cutucou com o cotovelo.
-Olha só, DD recebeu uma arma nova.
-O que é aquilo?
-Parece um mangual.
Eu olhei para Bloom.
-O que diabos é isso?
-Uma arma medieval, é uma bola de metal com saliências pontudas presa ao cabo por uma corrente.
-Pra mim o nome disso é arma e fim.
Ela riu.
-Era a melhor aluna da classe de história.
-"ATENÇÃO JOGADORES, O JOGO VAI COMEÇAR."
A buzina soou e da areia brotaram pontinhas de metal, depois grades e por fim, cada jogador estava preso em uma gaiola de metal. Eles estavam confusos e irritados, os zumbis eram trazidos em fila, sendo colocados perto de cada gaiola.
-O que diabos...
-Isso nunca aconteceu.
-Parece que alguém quer deixar o jogo um pouco mais difícil.
Eles olharam para mim. A buzina soou, os zumbis entraram. Muitos jogadores foram mordidos pela confusão do momento. Ouvimos os gritos desesperados dos jogadores, os gritos animados dos apostadores, e o som da luta incessante de acontecia á nossa frente. Eu virei o rosto. Ky colocou a mão no meu ombro.
-Não é mesmo uma cena fácil de assistir.
Eu balancei a cabeça positivamente, a chuva aumentou. Eu ficava ensopada e com frio a medida que o jogo acontecia. Apenas alguns jogadores continuavam de pé, eu não me importava em ver as cores, não me importava em ver quais jogadores haviam sobrevivido. Ficamos ali por mais algumas horas, haviam apenas dois jogadores, a chuva continuava nos castigando enquanto os jogadores corriam, pulavam e lutavam por suas vidas. Eu achei que ficaríamos ali pra sempre, num golpe único e certeiro, DD lançou alguma coisa pequena e afiada no garoto da outra gaiola. Ele caiu imóvel. Todos os capitães se levantaram incrédulos a Arena inteira em silêncio diante de uma menina ofegante. Eu estava de boca aberta, nenhum jogador usou tal modo para ganhar. Todos continuavam em silêncio, DD olhava para cada um de nós, parou os olhos furiosos em mim, deu um sorriso malicioso e continuou olhando. Doutor Sociopata começou a bater palmas, a Arena aplaudiu. Eu cruzei os braços, aquela sim era uma menina de baixo nível. Seguimos de volta para o acampamento, já havia anoitecido. Eu estava com tanta fome que poderia comer qualquer coisa e estava com tanta vontade de beber coca-cola que podia ouvir minha mãe dizer "Bebe água Beatriz, isso aí vai te matar." Debaixo da chuva, com frio e incrédulos, o restante de jogadores retornou para o acampamento da equipe azul.
-Parece besteira nos dividir agora.
-Quantos sobraram? Cinco? Éramos 70 jogadores!
-Eu disse que seria um banho de sangue, todos vocês achavam legal viver o sonho gamer de vocês, mas pessoas morriam! Pessoas, não a imagem que voltava segundos depois, seres humanos! A raça que está em extinção, por Deus! Vocês achavam engraçado quando algum companheiro era morto por um zumbi, vocês nem ligavam se ele tinha família ou não!
Eu estava exausta, gritava para todos eles ouvirem,todos os jogadores estavam em um círculo a minha volta, DD deu um passo á frente.
-Belo discurso, mas isso não vende. Entramos aqui por vontade própria, aceitamos as regras, deixamos tudo para trás.
Olhei rapidamente para a adaga na minha cintura, eu poderia matá-la, estaria fazendo um grande favor para todo mundo e estaria me protegendo. Ela não parecia exitar se tivesse a chance de colocar a adaga na minha garganta. Por outro lado, não a mataria assim, sem mais nem menos. Eu tenho princípios, e um caráter que não pretendo perder tão cedo.
-O que foi bonitinha? Sem palavras?
-Não, apenas, analisando as possibilidades.
Ela me observou por um segundo.
-Quais possibilidades?
-Enfiar essa faca na sua garganta agora mesmo, ou calar essa sua maldita boca. Você matou um garoto que nem conhecia! Você foi a única a matar outro jogador, você não percebe? Você é baixa, fria e cruel. Aposto que não tinha nenhum amigo lá fora, por isso se sente tão confortável em matar assim. Você não tem amigos DD, você tem pessoas que tinham medo de você, mas agora acham que você é desprezível, como a vaca gorda e suja que você é.
Ela avançou em mim, agarrou o meu pescoço com as duas mãos e me derrubou na areia, ela gritava nos meus ouvidos. Eu tentava soltar as mãos dela do meu pescoço, ela era forte, mas não tinha técnica nenhuma. Eu prendi suas mãos com as minhas, ela se debatia freneticamente enquanto eu tentava segurar seus braços.
-Quando você vai aprender que eu sou mais forte que você?
Ela continuava se debatendo, eu prendi seus braços em suas costas e coloquei sua cara na areia.
-Fica quieta!
Eu a levantei.
-Eu vou te matar sua pirralha!
Eu chutei a parte de trás dos seus joelhos, ela caiu na areia.
-Tá bom, como se você já não tivesse tentado antes.
Ela resmungou alguma coisa. Dois meninos vieram me ajudar com ela, agarraram seus braços e a levaram para dentro do acampamento, ela gritava e se debatia enquanto eles tentavam acalmá-la. Minha cabeça girava e minha bochecha ardia, ela deve ter me arranhado quando caímos. Ky e Bloom vieram me ajudar.
-Você tá bem?
-Parece pálida...
-Eu estou bem, só cansada.
-Seu rosto tá sangrando.
-Eu já vejo isso.
Me sentei na areia enquanto eles procuravam um pouco de água para mim. Talvez não tivesse sido uma boa ideia ter brigado com DD, agora eu estava acabada, poderia ficar ali sentada contanto que a chuva parasse. O restante dos jogadores se reuniu para comentar a briga, ou fugir da chuva. Meu cabelo pingava na roupa que já estava encharcada.
-Tudo bem?
Eu olhei pra cima.
-Eu quero sair daqui.
Blast sorriu.
-Essa não foi a minha pergunta.
-Eu sei lá, devo estar bem.
-Você tá sangrando.
-É só um arranhão.
-Deixa eu ver isso.
Ele sentou ao meu lado e puxou meu queixo para o lado.
-Tá doendo?
-Não muito.
-Vem comigo.
Ele me ajudou a levantar e andou comigo até o mar, a chuva havia diminuído bastante, mas o mar continuava revolto.
-Acho melhor lavar com a água do mar, vai ajudar bastante.
-Mas a aguá deve estar gelada.
-Você já ta encharcada, não faz diferença.
Ele riu.
-Mesmo assim.
-Então eu pulo com você.
-Pular da onde?
-Lá de cima.
Ele apontou para o penhasco do meu sonho. Eu dei um passo para trás.
-Vamos lá, não acredito que tenha medo de altura.
-Eu não tenho.
-Então qual o problema?
-Nada... Eu só...
-Vamos lá Bia, é só um pulo. Eu já fiz isso várias vezes.
-Tudo bem então.
Ele pegou minha mão e me guiou até o penhasco.
-Só uma dica. Prende bem a respiração, se você gritar engole água.
Ele sorriu eu acenei com a cabeça.
-No três está bem?
Desse vez a fala foi dele. Mas nada aconteceu, ele ainda estava ali. Ainda segurava a minha mão.
-Um...
Eu olhei para o horizonte, onde o céu cinzento se encontrava com a imensidão azul.
-Dois...
Fechei os olhos enquanto dávamos um passo a frente.
-Três.
Uma rajada de vento enfurecido bagunçou meus cabelos enquanto caíamos de encontro ao mar. A água estava gelada, e era fundo. Mais fundo do que eu já me permiti chegar. Com os olhos fechados eu imaginava o que a imensidão azul escondia. Abri os olhos devagar, analisando se o sal não machucava os olhos, ardeu por um instante mas depois eu estava afundando, enterrando os pés na areia e olhando para as pedras á minha frente. Ainda tinha fôlego, nadei até a parede de pedras para ver um pequeno ouriço do mar, tentei pegá-lo nas mãos mas espetei o dedo e me afastei bruscamente. Bati em algo gelado e duro, ao me virar dei de cara com olhos vermelhos, olhos que eu conhecia muito bem. Vinícius estava amarrado por uma corrente á uma pedra, ele tentava arrancar a corrente e me alcançar ao mesmo tempo. Eu gritei, e perdi todo o ar que me restava, engoli a água salgada por engano quando tentava desesperadamente nadar para a superfície. Ele agarrou meu pé, eu não tinha mais ar, não tinha mais nada. Chacoalhei minha perna com força pra tentar me soltar, tentava arranjar um meio de me colocar de volta á superfície. Blast puxou minha mão e me içou de volta a superfície, me puxou para a areia molhada e segurou minha cabeça com as duas mãos. Eu chorava, tossia e tentava entender o que estava acontecendo.
-Bia! Olha pra mim, o que aconteceu....
-Ele... estava lá.
-Ele quem?
Eu tossi várias vezes antes de poder falar outra vez.
-Um menino que eu conhecia.
-Bia.
Ele me forçou olhar pra ele.
-Você enroscou sua perna em algumas algas. Do que você tá falando?
-Eu vi ele, vi os olhos dele.
Eu estava chorando e tossindo outra vez. Blast me abraçou.
-Desculpa, eu não devia ter feito você pular. Vem, eu vou buscar alguma coisa pra você comer enquanto se seca tá legal? Depois tenho uma coisa pra te dizer.
Balancei a cabeça uma vez, deixei que ele me levasse até minha barraca, permiti que ele me desse o único cobertor que tinha para que eu parasse de tremer, ainda não podia acreditar, eu devo estar ficando louca.
-Seus amigos...
Eu o olhei, ainda estava tremendo, podia ser o frio ou a adrenalina. Talvez fossem os dois.
-Deus sua boca está roxa!
Ele me abraçou tão forte que perdi o ar, mas estava mais quente. A chuva havia recomeçado, não seria uma noite fácil.
-O... O que tem meus amigos?
-Vamos explodir a Arena durante o nosso desafio, achei que você devia saber.
-Então seguiram o plano da PET?
-Sim. Vamos preparar tudo hoje a noite, mas os guardas ainda estão por aí. É melhor você não vir.
Eu me afastei.
-Não vir? Não vir... Eles são meus amigos, vão mexer com explosivos e é melhor eu não vir?
-Você é uma gracinha nervosa.
-Cala a boca.
-Viu?
Eu grunhi.
-Posso te fazer uma perguntinha?
Ele sorriu.
-Claro.
-Você por acaso é bipolar? Porque numa hora finge que eu não existo, na outra me beija, numa hora me ignora e agora diz que eu sou uma gracinha?
Ele riu.
-Então você anda pensando no beijo que eu te dei.
-De jeito nenhum!
Ele olhou meus olhos por um instante, eu desviei o olhar.
-Pensa sim.
-Não.
-Então olha pra mim e diz isso.
Eu relutei um pouco em olhar, mas depois o fiz.
-Não pensei.
Ele me analisou por um segundo e se afastou.
-Uma pena.
-Porque?
-Porque eu faria isso de novo.
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