Eu não sabia ao certo o que aconteceria em seguida,o céu escuro, o sangue em minha camiseta e a dor no meu ombro esquerdo, tão forte que me mantinha acordada, tão forte que não me deixava esquecer da mão gelada sobre meu punho. Havia vozes, quantas delas? Eu estava vendo o céu escuro sobre mim, mas de onde vinham as vozes? Eu ainda as ouvia, não tão lucidamente quanto desejaria estar ouvindo. Elas murmuravam, acima de mim, do meu lado, sussurravam ao meu ouvido, clamavam-me como se eu estivesse perdida, estavam me procurando. A dor aumentou e eu gritei mas não ouve som, isso era realmente estranho. Senti mais mãos sobre mim, no ombro esquerdo, no pescoço, sumia por alguns segundos e depois apertava meu pulso. Seguiu esse padrão por mais ou menos três minutos, se é que eu contei certo. Depois de algum tempo as mãos pararam de me tocar, os múrmuros já não eram ouvidos, eu estava sozinha. Sozinha com o céu escuro e a dor mais lancinante que eu já senti. Estava sozinha até não saber se estava delirando de dor, ou vendo algo mítico de meia-vida. Um inferno particular que estava esperando por esse momento.
Eu despertei, não, não levantei e saí andando como se nada tivesse acontecido. Sim eu estivera alucinando por um longo tempo. Agora eu podia ver, estava deitada no carro, não sobre as mochilas que machucavam as minhas costas, mas sim no banco de trás do carro. Eu tentei alcançar o olhar mais perto da janela, eu via as estrelas, inúmeras estrelas que identificavam um só lugar que eu conhecia nesse mundo. Havíamos chegado ao Guarujá. Eu reconheceria aquele céu em qualquer lugar, foi debaixo dele que eu vi a minha primeira estrela cadente, foi debaixo dele que eu ria, brincava e corria como se não houvesse amanhã, foi debaixo daquele céu que o menino que eu mais gostava me beijou. Eu estava finalmente em casa, não a minha antiga casa, aquela em que eu morava com os meus pais, mas sim a casa em que todos nós tínhamos esperança de ser seguro o bastante para ser a nossa casa, por um bom tempo. Eu não ouvia nada além da minha respiração, estava muito quieto, perturbador até. Eles não seriam burros de me deixar sozinha no carro,seriam? Meu batimento estava acelerando, por algum motivo eu não sentia meu ombro, não sentia o meu lado esquerdo inteiro. Era bizarro. Fiquei no escuro por mais um tempo, estava perdida em lembranças, relembrando memórias. Remexendo em algo útil pelo meu cérebro, encontrei coisas engraçadas, tristes, extremamente depressivas, memórias que me transportavam para um lugar onde eu não estivesse deitada no banco traseiro de um carro, possivelmente drogada para não sentir a dor do meu ombro. Um curto tempo de solidão até que algo se chocou contra o vidro, bem em cima da minha cabeça. Um único som saiu da minha garganta, um som estridente, voraz e terrivelmente desafinado. Um grito agudo que seria ouvido de milhares de quilômetros. Eu gritei por dois motivos: Aquilo me deu um susto desgraçado. E eu me esquivei instintivamente para me afastar, forçando o ombro machucado. Doeu, não mais do que levar o tiro claro. Abriram a minha porta, um sorriso de alivio me saudou. Tatz estava bem ali, o rosto com a clara expressão de alívio no rosto, todo eles estavam com a mesma cara, todos menos o menino estranho de capuz. Tinha algo naquele menino, algo muito curioso sobre ele, eu certamente iria descobrir. O Phe, a Lala, Pammy, Iara, Tatz, o Colírio e a Jamille me ajudaram a sair do carro. Eles estavam na cidade antes da praia, como se fosse uma pequena vila com um túnel. O túnel levava á Enseada, o meu lugar. Todos estavam sentados em círculo com lanternas e comida enlatada que pegamos ainda hoje. Não era certo estar aqui, pequena ou não era uma cidade e pelo modo que os militares reagiram quando ultrapassamos a barreira, a cidade estava infectada. Não tínhamos muito tempo, não depois do berro que eu dei.
-Pessoal, eu acho que seria melhor a gente ir.
Lala veio falar comigo.
-Você vai querer comer primeiro, deve estar muito fraca, perdeu bastante sangue.
-Eu não acho que tenhamos tempo para isso.
Estava tudo em silêncio. Estava porque segundos depois o gemido daquelas coisas nos alcançou. Ficamos paralisados, não havia muito tempo. A gente tinha que fugir. Três minutos, foi o tempo de pegar tudo o que estava espalhado no chão e colocar no carro. Oito minutos, só para tentar me colocar no carro sem que algo provocasse um grito agudo de dor.
-Você vai ter que ir na caçamba. sinto muito.
-Que seja! Só tire a gente daqui.
Na caçamba foi mais fácil, de novo eu não era a única lá. Jamille e o Colírio estavam lá. Dois minutos e o carro ainda não estava ligado. Tinha algo errado, eu já podia vê-los, sentir o cheiro de sangue e podridão que emanava deles. A noite era escura, mas as estrelas iluminavam o chão que estava cinzento. O primeiro a aparecer tinha sido em sua vida um lixeiro. rapidamente reconhecido pela roupa laranja com aquele colete brilhoso. Ele mancava mas parecia determinado para chegar até a sua refeição. Cinco minutos, ainda estávamos parados no lugar.
-Phe! Tira a gente daqui!
Tentei falar controladamente e não muito alto, não queria apressar aquelas coisas.
-A chave está emperrada!
Não tínhamos tempo, eu podia ouvir os passos á quinze metros do carro. Pensei que eles estavam vindo da minha direita. O carro estava parado atravessado na estrada, da minha visão eles vinham da diagonal das casas que rodeavam a rodovia. Mas eu vi, bem atrás da minha amiga, no espaço entre ela e o Colírio. Uma mão ensanguentada tentando agarrar algo comestível.
-Saiam daí!
Apontei com o braço direito até o espaço onde a mão tentava se firmar em algo. "Estamos cercados. Cercados!" Ela gritou. A sede de sangue deles aumentou, começaram a correr, ou a mancar rapidamente.
-Phe!
-Eu sei fazer ligação direta.
- O quê?!
O menino estranho falou pela primeira vez, pelo vidrinho da cabine eu pude ver o Phe lutando para abrir espaço e deixar o menino mexer nos fios. O carro deu a partida, acho que fui a única a ficar boquiaberta. Quatro estavam contentes, dois estavam apavorados e dois estavam distraídos. Eu estava contente que nos salvamos, foi por um fio realmente. Eu dormi a maior parte do caminho, ainda pensando no passado daquele menino. Se eu tivesse pelo menos uma chance, perguntaria á ele. Então eu adormeci, havia sido um dia muito longo.
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