Já era noite. Não estava escuro, estranho. Vai ver tinha estrelas. Não. O céu estava claro e era noite, mas havia algo mais. Talvez seja uma aurora. Talvez signifique que o nosso paraíso está perto.Eu vi algo, mas o que era? Eu não me lembro, era apenas uma sombra. Alguém mexeu em mim e eu acordei. Não me lembro de ter dormido.
-Bia?
A Talita estava me cutucando na perna. Eu estava no Jipe. Quando foi que eu entrei no Jipe?
-Oi?
-Eles querem saber se você vai querer dormir em algum dos carros ou nas barracas que trouxemos, pediram pra eu te acordar.
-Tatz?
-Eu.
-Como eu vim parar no carro.
-Bom, depois que você saiu da oficina você comeu metade de um pacote de bolachas e disse que não tava se sentindo bem. Veio pro Jipe e dormiu.
-Tá, eu perdi algo.
Ela olhou para o lado.
-Me diz.
-Sabe "o" menino?
-Infelizmente sim.
Quando dizíamos "o" menino queríamos dizer o Vinicius.
-Ele tá lá fora, disse que não vai sair até falar com você.
-Tem grades em volta da loja, e um portão de ferro super gigante. Como ele entrou?
-É que a gente tinha deixado os portões abertos para ver se os carros estavam funcionando. Quando eles voltaram a gente esqueceu dos portões, daí duas horas depois eles chegaram com três carros perguntando por você, estão de greve até agora lá.
Ai Deus, o que e vou fazer, se eles ficarem tem uma grande chance de algum deles apanhar ou por mim, pela Jamille ou pela Anne. Se eu mandá-los embora eles podem morrer, ou pior, nos seguir.
-Eu preciso de um tempo pra pensar, não diz nada pra ele, para o pessoal diga que eu to bem aqui no carro, eles podem se ajeitar lá.
-Tudo bem.
Ela saiu, e eu fiquei sozinha. Dei uma olhada no Jipe, estava muito bom. As grades estavam em todas as janelas, haviam pedaços afiados de ferro nas laterais. Um verdadeiro carro de apocalipse, acho que os outros ficaram tão bons quanto esse. Tá. Eu tenho uma difícil decisão pra tomar. Eu fiquei ali, brisando, lembrando e me matando com medo de fazer algo errado. Depois de algum tempo, eu já estava entediada, mas esperava que ele também estivesse. Eu não pedi para ele voltar, eu não pedi para que ele falasse comigo, não depois do dia em que eu fui presa. Então ele que esperasse, mas eu estava exausta e queria que esse teatro acabasse logo.
Assim que eu apareci, ele se endireitou rapidamente. O pessoal cochichava e olhava para mim, provavelmente se perguntando sobre a minha decisão. Vinicius ia caminhar na minha direção mas eu apontei para ele e em seguida para um ponto distante onde ninguém poderia nos ouvir. Eu não estava pronta para enfrentá-lo, eu nunca estive. Seria mais difícil agora que eu tinha nossas vidas em mãos.
-Eu só queria falar que senti...
Eu o interrompi.
-Antes que você fale algo que não vai se lembrar daqui á duas horas, eu quero que saiba que demorou muito para eu me decidir, eu levei em conta coisas que eu desejei ter esquecido e você tem que agradecer por eu ter um bom coração.
Um pequena pausa, meu coração está acelerado. Ele sustenta o meu olhar e eu o desvio olhando para o céu. Por que diabos eu tinha que ser tão fraca quando tenho que ser forte?
-Você vai ficar aqui, só por essa noite. Eu não quero você e seus amigos perto da Anne ou da Jamille nem de nenhuma outra pessoa.
-Eu preciso falar com você.
-Você tem cinco minutos.
-Porque você tá assim? Depois daquele dia eu não pude mais falar com você, minha mãe descobriu sobre a festa, tirou tudo o que eu usava para me comunicar. Eu fiquei de castigo todo o tempo que não falei com você, eu senti sua falta. De verdade. Mas quando eu saí do castigo você não respondia as mensagens, nem me atendia e eu não te encontrava on line em nenhum lugar. Quando essa loucura começou eu pensei tanto em você, lembrei que você disse uma vez que seu plano era ir pra cá. Eu estava em Santos no campeonato de kart e lembrei de você, a corrida inteira. Eu te procurei na casa da sua avó e não te achei, daí entramos no mercado e eu te encontrei. Eu fiquei muito feliz em te ver, mas você estava tão fria e parecia nem se lembrar de mim. Eu queria te explicar. Então eu segui você e os seus amigos.
Porque meu Deus! Porque diabos ele tem que sentir minha falta quando eu estou tão bem, porque eu não consigo esquecer de uma vez o meu passado?
-Eu... Porque você... Mas...
Eu não achava palavras, não achava a minha voz eu não achava nada. Eu estava perdida. Estava sendo atacada por várias lembranças, as lágrimas começaram a cair.
-Eu não vou estar aqui o tempo todo. Você sabe disso, eu não vou poder esperar você sentir minha falta pra sentir muito. Eu sinto muito. Sinto por ter ficado meses sem notícias suas e ainda cair na mesma conversa.
E então antes que eu desabasse ainda mais eu disse as últimas palavras que significariam algo.
-Você pode ficar aqui esta noite, mas eu e você, acabamos aqui.
E então eu saí. Andei sem olhar para trás. Ele ficou lá, eu acho. Alguns passos depois eu estava quase inteira. O pessoal estava sentado, alguns estirados no chão entre carros, pessoas e comidas.
-Tudo bem?
A Tatz estava em pé, como sempre a do contra.
-Tô legal, já viram onde vocês vão se arrumar?
-Eu queria dormir no Jipe.
Ela fez beicinho.
-Você sabe que isso não funciona comigo, mas eu to afim de ver as estrelas então é todo seu.
Ela deu pulinhos e foi pegar um travesseiro. Eu estava sozinha. Não completamente porquê haviam pessoas perto de mim, e eu não ousei olhar para trás mesmo sabendo que certo alguém estaria ali. Mas eu estava sozinha porque ninguém entenderia, e ninguém iria saber o que estava acontecendo dentro de mim. Que horas são? Esse pensamento aleatório me fez procurar nos bolsos do meu shorts para encontrar meu celular. não estava ali. Talvez no Jipe? Eu andei até a oficina e encontrei a Tatz se ajeitando no banco traseiro.
-Seria bem mais fácil se você deitasse os bancos da frente...
-Eu to legal aqui.
-Ei, você viu meu celular aí?
Ela olhou nos bancos.
-Não, talvez esteja na Hilux ou na bancada da oficina.
-Tá, boa noite Tatz.
-Boa noite Bia.
Eu olhei na bancada e não havia nada com botões e cor de rosa. Só ferrugem e ferramentas. Talvez esteja na Hilux... Eu estava quase saindo da oficina quando algo puxou meu braço direito.
-Deus do céu!
-Desculpa.
Lucas estava com a mão no meu braço, ele estava com um olhar sério.
-Você não se cansa de aparecer desse jeito?
Ele sorriu.
-Desculpa.
-Não foi nada. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para a mão que segurava meu pulso e depois o soltou.
-Eu queria saber.... Eu queria saber quem é o menino de preto lá fora.
Eu sabia que uma hora ele ia perguntar. Eu respirei fundo. Mas foi bom ele ter perguntado, assim eu lembrei de todas as perguntas duvidosas que eu não fiz.
-Você lembra que eu te contei que eu fui presa?
Ele assentiu.
-Então, eu omiti uma pequena parte da história. Eu na verdade fui presa por culpa do menino de preto.
Ele continuou me olhando, esperando a continuação.
-Bom, eu estava com eles e eles estavam bebendo, fumando e dirigindo. A polícia chegou, todo mundo correu e ele ia pular o muro quando eu me dei conta que poderia sobrar para mim. Só que três dias antes eu me machuquei jogando futebol e por isso não podia pular nada. Então ao invés de me ajudar ele me soltou e eu caí. A polícia me pegou e eu fui presa por não denunciar nada.
-Uau.
-Pois é.
Alguns minutos em silêncio. Como eu perguntaria isso?
-Lucas?
Ele me olhou.
-Como você sabia o caminho para a praia?
-Como assim?
-Ontem, quando você dirigiu até a praia da Enseada. Como você sabia ao caminho até o Guarujá? Como você chegou na Enseada? Como você conhece tão bem a região e o mais importante, como você sabe o nome da praia que estamos indo se ninguém sabe além de mim?
Ele ficou quieto por alguns instantes. Eu achei que ele não iria me responder, mas o que ele disse me surpreendeu mais ainda.
-Eu te conheci antes de tudo isso, foi assim que eu soube.
Nenhum comentário:
Postar um comentário